Congresso: “A oração no Carmelo. Passado, presente e futuro”
México, julho de 2002
Padre Jean-Marie Laurier
A oração pessoal significa para os membros do Instituto Notre Dame de Vie, tanto para as leigas e leigos consagrados como para os sacerdotes, um caminho privilegiado de comunhão com Deus e de santificação para o Serviço do Reino. Em qualquer situação profissional ou sacerdotal, cada um dedica duas horas diárias à oração silenciosa, com a meta de viver na presença habitual do Senhor[1] e de ser uma testemunha comprometida com a sua graça.
A formação inicial do Instituto possui esta forte orientação teologal, num equilíbrio de vida que integra a liturgia, as conferências, o trabalho manual, os serviços comunitários, os recreios, passeios, e o diálogo com os formadores. Estes ao acompanharem os jovens, oferecem seu apoio e experiência, de tal maneira que o jovem formando possa responder com fidelidade e generosidade às solicitações do Espírito. Mais que um método, procura-se viver um estilo de oração ou melhor dizendo, atitudes essenciais para esse diálogo sumamente pessoal com o Criador e Salvador.
Na linha do carisma Teresiano, o Frei Maria Eugênio apresenta a oração como um contato de fé com o Deus vivo em Cristo. Um contato baseado na graça, no dinamismo do batismo, e na abertura de toda pessoa humana ao transcendente e ao infinito.
Disposições humanas
O contato com Deus pela fé requer uma disponibilidade completa do ser humano. Esta disposição básica têm como ponto de referência a existência e a mensagem de Teresa de Jesus:
“[O senhor quer a alma] sozinha e límpida e com vontade de receber…”[2]
“O exame de consciência, dizer a confissão e persignar-se, já se sabe que há de ser o primeiro.”[3]
De início, importa situar-se na verdade. É aspecto essencial da oração Teresiana, totalmente pessoal e relacionado com o rito penitencial e eclesial da eucaristia, com o sacramento do perdão e da reconciliação. Esta humildade interior ou pobreza espiritual, não requer método nem expressão específica, porém atrai os dons de Deus, segundo demonstrado no comentário Teresiano do evangelho da Anunciação[4].
A disponibilidade se comprova efetivamente no tempo concedido a oração, pois a pessoa cresce e se desenvolve com o tempo. Deus sabe valer-se do tempo para transformar as pessoas e a história. No trabalho profissional e no ministério sacerdotal, cada um planeja buscar os momentos mais oportunos, com melhor capacidade de atenção, para viver esse diálogo de fé com o Senhor.
Na tradição e convicção do Carmelo, a solidão favorece a intimidade com o Hóspede interior, Deus e Senhor único de nossas vidas:
“… não é outra coisa oração mental, ao que me parece, senão tratar de amizade estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama”[5];
“… assim fazia [Sua Majestade] sempre quando orava, não por necessidade, senão para nosso ensinamento.”[6]
A unificação do coração necessita umas condições exteriores. Na formação inicial, durante o mês anual de solidão e no ano sabático, a oração se faz em comum na capela. Como afirma Teresa de Jesus:
“é mister fazer-se amparo uns dos outros, os que servem [a Deus], para ir adiante.”[7]
Ver aos demais ajuda a permanecer na presença do Senhor, sobretudo, no princípio quando se tem pouca experiência. Mais tarde, a fidelidade chega a ser uma necessidade vital.
Na capela, se procura favorecer um recolhimento progressivo baseado nos seguintes elementos:
- Atitude corporal favorável (de joelhos, sentados, com alternâncias segundo as possibilidades físicas das pessoas);
- Reza pausada do Ângelus chamando o Espírito; leitura breve de um texto bíblico ou um outro texto de espiritualidade;
- Durante os primeiros quinze minutos da oração, as luzes e os focos permitem uma leitura pessoal para centrar a atenção e vivificar a fé com um alimento intelectual; depois se abranda a intensidade da luz que fica orientada para o sacrário: a presença sacramental de Cristo Ressuscitado não deixa de ser um poderoso incentivo nos momentos inevitáveis de dispersão e “aridez”.
Esta pedagogia concreta de recolhimento não pretende ser senão uma ajuda. É utilizado bastante nos grupos de oração juvenis ou adultos acompanhados pelo Instituto, embora o tempo de oração seja mais curto.
Durante o tempo de deserto mais intenso, alguns membros do Instituto preferem fazer a oração no campo, numa ermita, valendo-se da formosura da criação para orientar-se para o Senhor. Os membros que estão trabalhando nas cidades, com seu dia-a-dia intenso e ruidoso, as vezes fazem a oração no próprio quarto, seguindo o chamado evangélico: “Entra em teu quarto, fecha a porta e ore ao teu Pai, que está em segredo.”[8] É habitual utilizar uma imagem ou um ícone, também uma luz agradável, para introduzir-se mais facilmente. Em todo caso, se busca um espaço de silêncio e solidão:
“Uma só palavra falou o Pai eterno, que foi seu Filho, e esta palavra sempre em eterno silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela alma.”[9]
Olhar para Cristo
A segunda atitude fundamental da oração contemplativa consistirá em centrar o “olhar interior” sobre Cristo, “Caminho, Verdade e Vida”[10], “único mediador entre Deus e os homens”[11]. Teresa de Jesus nos coloca uns apontamentos muito concretos:
“Procurai logo, filhas, pois estais sós, arranjar companhia. E que melhor que a do mesmo Mestre que ensinou a oração que ides rezar…? Representai-vos o mesmo Senhor junto de vós… enquanto puderdes, não estejais sem tão bom amigo… (Ele) nunca vos faltará … Não vos peço agora que penseis Nele, nem que formeis muitos conceitos… não vos peço senão que olheis para Ele.”[12].
Cabe ao orante, estar na presença de Cristo, na totalidade de seu mistério (“Se estais alegre, olhai-o ressuscitado… se estais com trabalhos ou tristes, olhai-o a caminho do horto”[13].) É relação de fé, olhar simples no silêncio, olhar intuitivo, para além das considerações intelectuais, conclusões práticas e resoluções características de toda meditação, ainda que baseado na recordação de uma cena evangélica, uma palavra ou um gesto salvífico de Cristo, que permitam o recolhimento interior e certa unificação da atividade sensível e intelectual.
Os ensinamentos do Frei Maria Eugênio a esse respeito se encontram desenvolvidos em Quero Ver a Deus (grande obra do FME em breve traduzida em português) e destacam a contribuição do magistério de São João da Cruz sobre a fé como “meio próximo e proporcionado… que nos dá e comunica o próprio Deus”[14], “escada secreta” que nos permite entrar no mistério divino, “mesmo sendo de noite”. A atividade do orante será, sobretudo, uma atualização da fé batismal e sua perseverança. Uma fé convencida de sua própria eficácia e fecundidade. «Toca o própio Deus», «produz um estremecimento em Cristo», insiste o Frei Maria Eugênio ao referir-se ao episódio evangélico da mulher hemorrágica:
“Jesus se dá conta de que uma força havia saído Dele… quem me tocou? – Filha, tua fé te salvou; vai em paz e fique curada de tua enfermidade”[15].
Evidentemente, este contato de fé vinha sendo preparado por uma atividade livre. A pobre mulher tinha ouvido falar de Jesus, tinha refletido e já tinha se aproximado: «Se eu tocar mesmo que seja somente em suas vestes, me salvarei». Encontramos aqui uma tipologia da atividade de nossa fé na oração. Tem quesitos: o estudo diário da Palavra de Deus, a busca da presença divina nas circunstâncias da vida e nas pessoas. Também uma coerência de vida, uma ascese ou disciplina, particularmente em tudo que se possa afetar o olhar, a imaginação e a memória.
A fé permite um contato divinizador com uma pessoa viva, Cristo, o Messias de Deus e Salvador dos homens. Adotará formas concretas muito diversas segundo a idade do orante, sua situação física ou psicológica, as condições de lugar etc. As vezes consistirá em repetir mentalmente uma frase breve: «Creio em ti Senhor; és minha rocha, minha fortaleza; te busco e estás aqui presente…». Uma vez, numa oração em comunidade, ouviram o Frei Maria Eugênio pronunciar essas palavras interiores: «Jesus, tenho fome de ti!». Outras vezes, a fé se atualizará em uma atitude de paz, de confiança. Uma aspiração silenciosa. Será sempre possível, apesar do cansaço físico ou do nervosismo, das distrações múltiplas causadas pelas preocupações do momento ou pela obscuridade do mistério.
Ao dar-se conta de que houve perda do contato, volte a centrar-se na palavra ou cena do Evangelho que havia utilizado ao recolher-se ou, na presença Eucarística de Cristo. A fecundidade e o valor da oração radicam nesta perseverança confiada. As técnicas de respiração e relaxação podem ser uma grande ajuda para assumir o próprio nervosismo e a tensão interna. “Utilizemos o que pode haver de bom nelas, mas sem pensar que com uma técnica puramente natural seja possível chegar a uma verdadeira oração e, sobretudo, à contemplação sobrenatural”[16]. Esta última é um dom gratuito concedido à fé perseverante e humilde.
Ao sopro do Espírito
O recolhimento e a atualização da fé evitarão tanto o ativismo intelectual (não se trata de ler ou pensar muito, «senão de amar muito»), como a completa passividade (de um vazio mental ou do sonho…). Nós orientamos para uma zona mais silenciosa do espírito, onde mora o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e onde se aprofunda nossa relação filial, para além das pressões exteriores, da agitação da sensibilidade, dos determinismos psicológicos. É assim que se vai elaborando uma ciência experimental, uma arte pessoal, com seus sucessos e fracassos. Marie Pila, co-fundadora do Instituto Nossa Senhora da Vida, insistia para que cada um encontrasse seu próprio caminho com “a luz que arde no coração”, uma maneira pessoal de estar com Deus. A parábola do passarinho que Teresinha de Lisieux desenvolve em seu manuscrito B não nos oferece um método para adotarmos mas, um testemunho de fé humilde e perseverante e ao mesmo tempo, de maturidade espiritual e humana:
“A pesar de minha pequenez, me atrevo a olhar fixamente para o Sol divino… O passarinho quisera voar até esse sol….Que será dele? Morrerá de dor vendo-se impotente? Oh não!… com audaz abandono, quer seguir olhando fixamente para o seu divino Sol… se escuras nuvens chegam a ocultar-lhe o Astro do Amor, o passarinho não se move… sabe que além das nuvens, o seu Sol segue brilhando;…muitas vezes… o pobre passarinho volta a ocupar-se das bagatelas da terra…No entanto, depois de todos os seus erros, em lugar de ir esconder-se…volta-se para seu amável Sol, apresenta a seus raios caridosos suas asinhas molhadas…pensando…atirar ainda mais o amor daquele que não veio chamar os justos mas os pecadores… etc”[17].
Nossa fidelidade não é obstinação e nem voluntarismo. Mas ela expressa a convicção de que “Deus está como o sol sobre as almas para comunicar-se a elas… é impossível quando a alma faz o que é de sua parte, que Deus deixe de fazer o que é de sua, em comunicar-se ao menos em secreto e silêncio[18]”.
Cremos que o Espírito Santo «se une com nosso espírito…. e vem em ajuda de nossas fraquezas. Pois não sabemos como orar, mas intercede por nós com gemidos inefáveis[19]». O Espírito, com seus dons, vitaliza o contato de fé com Deus e fortalece o olhar contemplativo. Sem o Espírito Santo, como seria possível viver duas horas de oração por dia? Aliás, o longo tempo de nossas orações abre nossa humanidade e nossa existência à influência transformadora do Espírito. Influência que poderá manifestar-se por uma paz sensível às vezes, por uma luz que capta nossa inteligência outras vezes, porém mais profundamente por uma atração até o mistério, uma aceitação da obscuridade, uma sede do Deus vivo e o desejo de tornar a beber do manancial da vida, «mesmo que de noite».
A aridez da oração contemplativa nos abre à novidade do Espírito. Marie Pila dizia:
« A gente se aborrece na oração, contudo atravessaria uma linha de fogo para poder fazer oração. Sempre que vou a oração, vou fazer algo novo. Estou na espera do Espírito. Jesus dai-me o vosso Espírito: é o Amor em pessoa. Jesus, dai-me o vosso Amor».
Não há dúvida de que, na pedagogia de Santa Teresa de Jesus e do Frei Maria-Eugênio, o fruto mais desejável deste diálogo de fé perseverante é uma docilidade maior ao Espírito, uma entrega mais profunda e comprometida com a Igreja de Cristo e com a humanidade desejosa de luz e de amor. A oração autêntica é transformadora e capacita as pessoas para uma missão fecunda na Igreja e no mundo. Esta orientação eclesial e apostólica estimula nossa fidelidade pessoal, é a garantia do dinamismo da oração contemplativa.
[1] Cf. 1R 17,1
[2] Vida 8,9
[3] Caminho de perfeição 26,1
[4] CP 16,1-2
[5] V 8,5
[6] CP 24,4
[7] V 7,22
[8] Mt 6,6
[9] S. João da Cruz, Ditos de luz e amor 104 (Vozes 98)
[10] Jo 14,6
[11] 1 Tim 2,5
[12] CP 26 1.3
[13] CP 26,4-5
[14] Subida do Monte Carmelo II,8-9
[15] Mc 5,25…34
[16] Frei Maria-Eugênio do MJ, Ao sopro do Espírito. Oração e ação. Paulus, São Paulo, 2010, pág. 110.
[17] Manuscrito B 5 verso
[18] São João da Cruz, Chama de amor viva 3,33
[19] Ro 8,16.26